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Sou a criatura do que vejo Categorias:
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Primeiro ele viu pessoas como árvores. Alicja Iwanska, citada num livro de Paul Hiebert, diz que temos a tendência de ver pessoas que não são parte do nosso contexto social imediato como parte da paisagem, ou um pedaço de mobília.1 Creio que ver as pessoas assim é ver como o cego: “Vejo pessoas; elas parecem árvores andando” (Mc 8.24, NVI). Jesus precisou curá-lo duas vezes para que ele ficasse livre desse problema.
Um dia, durante o culto semanal de nosso grupo missionário, recebi esta cura. No louvor, uma alemã hipponga, de trinta e poucos anos, tocava violino. Ela e o marido têm quatro filhos e fazem um trabalho difícil numa tribo. Passar noites atolada no barro da estrada que dá acesso à tribo é comum no seu dia-a-dia de mãe missionária. É uma heroína, dessas saídas dos livros dos heróis da fé. Ao lado dela, uma maranhense cheia de unção e coragem, que também trabalha com o marido e dois filhos, implantando uma igreja viva numa tribo, à custa de muito jejum e oração. Mais ao lado, tocando violão, ainda um tanto tímida, uma mocinha católica, toda tatuada, recém-chegada para o curso básico. Pela primeira vez, depois de três semanas aqui, ela consegue cantar. Está livre, adorando como se nunca o tivesse feito antes.
No meio do povo, uns adoram, outros correm atrás de bebês, outros fazem uma roda para adorar com alguns pequenos. Começo a perceber cada um. Sei a história da maioria. No dia-a-dia, a gente nem vê o valor de todos eles. Vejo o argentino que trabalhou como caminhoneiro por 7 anos só para se preparar a fim de voltar para o meio do povo indígena para o qual Deus o chamou. Vejo uma chilena num canto, filha de uma ex-militante da esquerda chilena; sua mãe sofreu horrores durante a ditadura antes de morrer. Tão cheia de garra quanto a mãe, luta sozinha para preservar uma tribo que vai desaparecendo. Os velhos da tribo têm um profundo respeito por ela, que, por sua vez, trata a todos por “senhor”. Um velho chefe morria de câncer e não permitia que ninguém o medicasse ou o levasse ao médico. A única pessoa em quem confiou foi ela, e apenas dela recebia a medicação contra dor até seus últimos dias de vida. Todos os “brancos” que ele havia conhecido até então eram canalhas. Mas Zita, a chilena, era Jesus de verdade para ele. Vejo também a carioca Sônia, ex-mãe pequena de santo, que anda pra lá e pra cá na sua bicicletinha, servindo em vários ministérios, louvando, se sacudindo também pra lá e pra cá.
Viro pra trás e lá está o Emanuel, sueco alto e magro, sempre atolado de trabalho até o pescoço, servindo nas necessidades mais diversas, desde design gráfico até construção, administração e saúde. Ele é casado com a Rute, uma moça do sertão nordestino. O nome deles é serviço. Valorizam cada tarefa aparentemente banal como se fosse a coisa mais importante do mundo. Colossenses 3.17 — “Tudo o que fizerem, seja em palavra ou em ação, façam-no em nome do Senhor Jesus, dando por meio dele graças a Deus Pai” — é uma realidade na vida deles.
Na frente estão os novatos, na sua maioria moças, dos mais diferentes passados e lugares. Junto com uma jovem que trancou o curso de medicina para se dedicar a Deus por um tempo, está sentado um jovenzinho que ganhava a vida catando lixo no monturo. Nos olhares, vejo um brilho de expectativa pelo novo. Eles sabem que Deus não é medíocre nem comum. Estão começando a sentir que a vida deles faz diferença e que o Criador do universo tem um futuro especial para eles.

É, naquele dia vi as pessoas como mais do que apenas árvores. Vi sonhos sonhados por Deus realizados na vida de cada um daqueles “meros missionários”. Senti-me forte, eu também, amada por Ele e me lembrei do poema de Octavio Paz:

Me vejo no que vejo

Como olhar em meus olhos

Com um olho mais límpido

Me olha no que olho,

É minha criação

Isto o que vejo

Perceber é conceber

Águas do pensamento

Sou a criatura do que vejo…2

Eu sou o que vejo. Sou a visão que tenho, os sonhos que sonho. Sou o bem que vejo nas pessoas e a esperança que tenho mesmo contra a esperança. Minha missão não é medíocre nem comum, nem é a de ninguém que reflete a imagem dele. Sou a criação do que vejo. Que assim seja.

Notas

1. In: HIEBERT, Paul. Cultural Anthropology. Michigan, EUA: Baker Book House, 1983, Preface to second edition, p. xxi.

2. Octavio Paz. Tradução: Haroldo de Campos